Os 15 dias demoraram a passar, e meia hora antes do horário marcado ela estava lá, louca para continuar aquilo que poderia ser sua pré-história pessoal
Sonia sempre tranquila e sorridente nem precisou dar orientações porque ela entrou e já "pulou" para a maca de cromoterapia. A terapeuta teve que fazê-la entender que a ansiedade exagerada só iria atrapalhar. E ela obedeceu, respirando e relaxando como o indicado. Nunca soube se este (a ansiedade) fora o motivo de a sessão acontecer de um modo diferente, sem apresentação de diálogos. Desta vez foi uma descrição dos fatos, mas também acompanhada de uma vivência quase física dos acontecimentos. Foi assim:
Espanha, norte da Catalunha. 1826. Uma tenda ao estilo cigano.
Aquela era uma "casa" cheia de movimento e música, mas também repleta de frustrações.
O chefe da família, Jan, é de origem cigana, da Europa oriental e sua família viera para a Espanha há muitos anos. Jan era apenas um menino de 15 anos, mas ao passarem pela França apaixonara-se perdidamente por Marie, sua Marie de la mer (referência à Santa protetora dos ciganos). Passaram-se 3 anos até que Jan conseguisse criar coragem e romper com a família, separando-se deles e levar Marie para viver com ele naquelas areias espanholas. De suas tradições mantivera a tenda, o comércio de cobre e o amor pela música que interpretava tão bem, agora em sua guitarra. Tiveram uma única filha, Zaira.
Marie, uniu-se a Jan por puro encantamento, por paixão. Mas ao longo dos tempos, incomodou-se com aquele estilo de vida sem conforto e segundo ela instável e sem futuro. Reclamava o tempo todo, mas continuava ali, cuidando da tenda e da filha.
Zaira crescera ouvindo as histórias do pai sobre sua gente e confrontando-as com as histórias da mãe sobre as maravilhas da sofisticada França. Casara-se aos 19 anos com Juan, mais por convenção e por insistência da mãe de que este era o caminho correto para uma moça. Todos os finais de tarde unia-se ao pai que tocava para que ela dançasse. E foi num dia assim, onde Zaira mostrava seus dotes de dançarina que Juan chegou à tenda em busca de objetos em cobre. Foi amor à primeira vista. Tiveram 3 filhos lindos. Zaira os amava muito e envolvia-os nas danças e músicas do pai. Eram muito alegres e festivos, exceto Marie, que além das reclamações sobre o marido, também implicava muito com o genro.
O casamento de Zaira e Juan era algo morno, convencional. O rapaz não tinha ambições, muito menos sonhos. Juan percebia a indiferença da filha, mas agia como se não percebesse até para não provocar ainda mais a ira da mulher que dizia que o genro não tinha pulso como marido.
Zaira porém, apesar do amor pela companhia do pai e o amor pelos filhos, guardava no coração um desejo enorme de conhecer outros lugares,de exercer ao menos um pouco a atividade de seus ancestrais, a andança, como dizia.
Em uma manhã de domingo, Jan estava mais animado do que nunca e junto com os netos, agora com 3, 5 e 7 anos, iniciou mais cedo a cantoria. Logo Zaira juntou-se a eles. Mal perceberam a aproximação de um cavaleiro que pediu autorização para aproximar-se. Pararam de dançar e cantar para receber o viajante que pedia informações. Convidaram-no a tomar um copo de vinho enquanto descansava. Zaira os serviu e ficou por perto ouvindo a conversa. O nome do rapaz era Frederico, viajava pela região aceitando pequenos trabalhos que lhe dessem o suficiente para correr mais e mais trechos, conhecer lugares. Enquanto Zaira encantava-se a cada palavra dele, Marie sentia aversão aquele que lhe parecia um vagabundo sem rumo.
Marie não gostou quando Jan lhe ofereceu pouso por alguns dias e Frederico aceitou.
Foram dias devastadores naquela família. Além de encantar Jan e as crianças com sua fala fácil e atraente , Frederico arrebatou o coração de Zaira com suas histórias. Na véspera da partida do simpático Frederico, Jan e as crianças fizeram uma despedida com muita música. Frederico que já os observara todos aqueles dias, pediu autorização a Juan para dançar com sua mulher. Juan aceitou para desespero de Marie que via o brilho nos olhos da filha. Zaira pela primeira vez na vida teve dificuldades para manter o ritmo de seus volteios. Os olhos de Frederico fixos nos seus a desequilibravam Mantinha uma distância adequada, mas em um momento em que estavam próximos ele disse a Zaira que teria enorme prazer em tê-la em sua companhia quando partisse pela manhã. Zaira parou de dançar, arrumou uma desculpa e entrou. Os outros ainda tocaram e cantaram por algum tempo.
Zaira estava alucinada. Não conseguia conter seus impulsos. Partir com Frederico seria sua possibilidade de realizar seu sonho de conhecer o mundo. Mas e os filhos? O pai ela sabia que entenderia e que sempre poderia contar com ele. A mãe... jamais aceitaria nenhuma decisão, fosse ela qual fosse. Juan? Não teria reações e cuidaria dos meninos. Seu coração doía. Seu cérebro fervia. Mas estava encantada com Frederico e sabia que se não fosse embora agora, nunca mais o faria. Antes do amanhecer, enquanto todos dormiam escreveu uma longa carta ao pai explicando tudo,pedindo que cuidasse dos netos e que tentasse fazer com que Juan não a odiasse. Disse ainda que voltaria um dia e que esperava que a mãe a perdoasse. Pegou algumas roupas e saiu, esperando que Frederico acordasse logo. Quando saiu da tenda, avistou Frederico, encostado em seu cavalo já preparado para partir. Correu até ele abraçou-o trêmula. Ele não disse nada, apenas ajudou-a a montar e partiram.
Foi Marie que encontrou a carta e fez um grande alarido. Gritava com o marido, querendo que ele fosse atrás da filha, evocando as regras de puritanismo feminino do mundo cigano. Jan nada dizia. Acusava o genro de todas as coisas, de não ter sido capaz de "domar" a mulher, de não ter voz para nada. E continuou a gritar até o dia de sua morte 8 anos depois.
Jan, secretamente apoiava a decisão da filha. Há muito não tinha em si as ideias de submissão da mulher, afinal, desde que deixou seu povo por uma delas, não sentia-se em condições de recorrer àquelas ideias.
Juan parecia não entender o que acontecera. Não demonstrava sentimentos de tristeza. Continuou como sempre convivendo com a despreocupação do sogro e a intolerância da sogra.
As crianças foram muito bem cuidadas especialmente pelo avô que lhes dizia que a mãe tinha ido atrás de histórias interessantes para contar quando voltasse. E viviam felizes, como as crianças fazem.
Zaira e Frederico correram "o mundo". Zaira era completamente apaixonada por aquele homem galante que tudo conhecia e a todos agradava. E ele era gentil e amoroso com ela. O que ela não sabia é que ele era assim com todas as belas mulheres que conhecia. E viveu nesta inocência por muitos anos, até que um dia, estavam chegando à França, Frederico a deixou em uma pequena pousada e disse que sairia para negociar uns tecidos que trouxera na bagagem. Nunca mais voltou. Zaira o procurou por muito tempo sem resultados. Não tinha recursos próprios e teve que trabalhar para a senhora da pousada por um bom tempo para reunir o suficiente para sair dali.
Sentia sim a falta de Juan, sofria, mas precisava sobreviver, e àquela altura sentia uma grande necessidade de voltar à Espanha e rever os pais e os filhos. Não sabia como seria recebida, mas tinha que fazer isto. Decidiu instalar-se em Barcelona antes de procurar a família. Alugou um pequeno quarto que tinha como mobília apenas uma cama, uma cadeira de balanço e uma estante onde guardou os livros que sobraram dos muitos que leu durante os anos de viagem. Dias depois de ajeitar-se na nova morada ela pegou a estrada para a antiga casa. Assim, quando quisesse teria um lugar para voltar, com a civilidade que adquirira em suas viagens.
Chegou em um começo de tarde e o cenário que avistou alegrou seu coração. Lá estavam Juan e Jan tocando seus instrumentos e um belo rapazinho aprendendo com eles. Antes que despertasse daquela visão que apertava seu coração entre medo e alegria, ouviu a voz do pai gritando: Zaira! minha pequena! Viu também quando Juan assustado abraçou por trás o jovem rapaz, que disvencilhou-se dele para acompanhar o avô. Juan a abraçou e beijou com lágrimas nos olhos. Zaira nem sabia o que dizer. Perguntou pela mãe, pelos filhos. Mas o pai ainda não conseguia falar, só queria olhar para ela. O rapazinho aproximou-se, olhou prá ela e disse - Mamãe? Zaira quasee não pode manter-se sobre as pernas. Abraçou o filho agora com 17 anos! Disse a ele que tinham muito a conversar, perguntou pelos irmãos e o rapaz disse que ia buscá-los. Saiu correndo para chamar os outros 2. Enquanto isso, Juan, deixou a tenda para o lado oposto da cabana de modo a não encontrar-se com Zaira. E ela perguntou ao pai pela mãe. Entristeceu-se em saber de sua morte, pediu desculpas ao pai por não estar ali mas falou da sensação boa de ter realizado seu sonho. O pai perguntou de Frederico, e ela apenas olhou prá ele que compreendeu o que acontecera. Teriam tempo para conversar. Enquanto isso, ao longe viram os 2 rapazes se aproximando. Eram o mais velho e o caçula que ele trouxera e que também abraçou a mãe e olhava-a como se fosse um milagre, com olhos brilhantes e sedentos de informações. Zaira perguntou pelo filho do meio. Os outros dois entreolharam-se e abaixaram os olhos sem saber o que dizer até que o mais velho explicou que ele não queria vê-la. Jan disse à filha que tivesse paciência que com o tempo tudo se resolveria. Ela assentiu e foram para a porta da tenda falando todos ao mesmo tempo.
A noite chegou, adormeceram e ao acordar na manhã seguinte perceberam que o outro filho e Juan não voltaram. Zaira entristeceu-se mas o pai a consolou. Decidiram que os 2 rapazes iriam com ela para conhecer a casa de Barcelona e que depois todos voltariam e decidiriam se permaneceriam ali, no lugar de sempre ou se todos iriam viver em Barcelona, onde havia maior possibilidade de trabalho para os rapazes. Jan temiaem deixar sua tenda, mas sabia que já não tinha idade para cuidar de tudo como gostaria, e ficar com a filha seria um prazer,
Os rapazes foram com ela para Barcelona, ficaram maravilhados com a grande cidade, mas tinham que decidir em conjunto com o avô o pai e o outro irmão.
Voltaram à tenda e Jan, meio tristonho disse que o outro filho e Juan não aceitavam a volta de Zaira. Ficou decidido que ela permaneceria em Barcelona até que a situação mudasse. O pai e os filhos a visitariam quando quisessem.
Mas as coisas não mudaram. Os anos se passaram e Zaira tinha que se contentar com as visitas da família e com suas idas à tenda sempre amargadas pela ausência de Juan e do outro filho. Ela os entendia, mas a culpa que sentia a deixavam muito deprimida. Só a presença do pai e dos filhos era capaz de consolá-la.
Às vezes eles passavam até 3 semanas sem visitá la. E foi em uma dessas visitas que os dois rapazes chegaram à casa de Barcelona e encontraram Zaira, agora aos 56 anos morta, sentada em sua cadeira de balanço com um livro aberto no colo.
A nossa ela agitou-se com as últimas cenas e Sonia resolveu chama-la de volta. Ela retomou as energias, levantou-se e foi sentar-se diante de Sonia, disposta a finalmente falar de si mesma.
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