sino

domingo, 29 de agosto de 2010

Capítulo 8 - Desconstruindo o Mito

Foram tempos muito duros.

Se de um lado, ela quisesse muito manter aquela situação que sonhara eterna e como uma menina, esperava que em algum momento se transformaria num lindo conto de fadas, por outro a cada dia sua consciência e maturidade não permitiam que continuasse em um devaneio, sem nenhum vestígio de realidade e objetividade.

Desde aquela noite, Lucas passou a falar em monossílabos. "Esquecia" de marcar o horário em que ela o encontraria na estação e quando ela chegava em casa ele nunca estava lá. Lucas recusava-se a fazer qualquer tipo de coisa de que antes parecia gostar.

Ela ficava cada vez mais angustiada. E suas lembranças transformaram-se em uma vilã implacável. Parecia um filme descontrolado que vagava por seus pensamentos insistindo para que finalmente raciocinasse sobre tantas situações estranhas ou obscuras.

Lembrou-se de conversas que teve com a mãe de Lucas. Dona Jane, falava de como não entendia o que havia acontecido com os filhos. Os dois mais velhos, que ao saírem da universidade conseguiram excelentes empregos em grandes empresas e lá ficaram por muitos anos, até que fossem mandados embora nas fases ruins do mercado no começo dos anos 80. Daí em diante, nunca mais conseguiram trabalho, faliram, um entregou-se ao alcool, perdeu a família. O outro transformou-se em um ser inerte, sentado eternamente em frente à TV, dependente do trabalho da esposa. E Lucas, que segundo a mãe dera muito trabalho quando criança, era dependente e mimado, com tendências à birra. Dona Jane dissera-lhe uma vez: - Será que vale a pena? Você não acha que deveria ter construído uma família prá você, ter filhos.... Ela surpreendeu-se com o comentário e respondeu que o amava muito e esperaria o quanto fosse preciso para tê-lo só prá si. Dona Jane voltou a fazer um comentário surpreendente: acho que não compensa.

Era difícil admitir, mas raramente as mães falavam coisas assim de um filho que valesse à pena.

O que ela não enxergava? Teria vivido uma fantasia toda sua vida?

Continuava a vasculhar a memória sobre os acontecimentos desde a adolescência. E as descobertas vinham aos montes. Por exemplo: a mania que Lucas tinha de nunca terminar uma canção, tinha o único objetivo de fazer com que as pessoas protestassem e afirmassem assim que o admiravam! As frases "fantásticas" e os gestos elaborados eram com certeza tirados de livros e filmes que ele assistira e adotava como comportamentos próprios.

Lembrou-se também de algo para o que não havia dado atenção na época certa. Lucas fora expulso da casa de Sonia pela sogra, que afinal era a dona da casa. E isto a fez lembrar também que Lucas, quando repentinamente casou-se com Sonia, tinha um motivo a mais além de um amor ou uma decisão consciente. Menos de um mês antes do casamento, teve uma briga com o pai que o mandou embora de casa. Ou seja, estava a procura de abrigo....

A tristeza que as lembranças traziam, juntou-se ao desconforto de não se sentir mais bem vinda naquela casa que prá ela era seu castelo, seu ninho de aconchego.

Em uma tarde, ao chegar na casa de Lucas depois do trabalho, encontrou-o passando uma camisa nova, perfumado, como se fosse sair.

Perguntou: Vai a algum lugar?
Lucas respondeu: Não vou ficar por aqui mesmo, estou cansado e quero dormir.
-Ah, tudo bem, vou fazer algo prá nós. Ela disse isso e já entrou na cozinha. Sobre a mesa, estavam os ingredientes e as vasilhas que ele usava para fazer pizzas. E perguntou: Lu? Você vai fazer pizza?
- Não sei, agora eu vou dormir.
- Vou tomar um banho então, ela disse.
- Não. Acho melhor você ir embora, quero ficar sozinho.
- Lu, vamos conversar... O que tá acontecendo? Você não liga mais, não me quer aqui. Eu nunca sei se devo vir, estou confusa.
- Está confusa porque quer. Você não tem mais nada prá fazer aqui, acabou....Foi bom enquanto durou.
- Lu.. você tá terminando comigo? Não pode ser isso. Vou deixar você sossegado hoje. Pensa, volto amanhã prá conversar.
- Não, você não vai voltar. Só o dia que entender que somos apenas amigos. Aliás, sempre foi só isso.
- Lu, não acredito no que estou ouvindo! Foram 30 anos... de amizade? E minha vida, minha dedicação.
- Tudo o que você fez, foi escolha sua....e por favor, vá embora na boa, porque quero descansar para receber uma amiga que vem comer uma pizza comigo hoje.

Ela perdeu a fala. Saiu sem dizer nada e antes de alcançar a rua já chorava copiosamente.
Passou aquela noite em desespero, fazendo-se milhões de perguntas sobre o que estava acontecendo, o que havia feito de sua vida.

Na manhã seguinte, ainda trêmula, resolveu recorrer ao amigo mais querido e sábio, Mestre Miguel. Telefonou ao mosteiro e quando ele atendeu com o doce alô de sempre, ela caiu em prantos novamente e mau conseguia contar o que estava se passando. Miguel ouviu o relato da amiga com atenção e perguntou o que poderia fazer. Ela disse que não sabia, que havia ligado porque precisava falar com alguém em que confiasse. Mas tinha uma pergunta: Miguel, será que o amor acabou? Ao que Miguel respondeu: - minha querida, o amor nunca acaba, ele apenas muda de alvo. Falaram um pouco mais, mas ela já não ouvia mais nada, a frase de Miguel ressoava em sua mente, insistentemente.

Ela perguntava-se como  Miguel podia dizer aquilo! Se o amor muda de alvo, como fica o alvo antigo? Era injusto.

Sua angústia continuou ainda por muito tempo. Tentava falar com Lucas por telefone, mas ele já não a atendia mais. Perguntava aos amigos que se esquivavam da conversa. Até que um dia, precisou ir de trem ao centro da cidade. Na volta,  ao chegar na estação principal, de longe avistou Lucas, parado próximo às escadas, parecendo estar a espera de alguém. Posicionou-se atrás de uma coluna e decidiu esperar para ver quem era. Em segundos, viu uma mulher de vestido estranho, cabelos alvoroçados, chegar e Lucas abrir um largo sorriso ao abraçar-la dirigindo-se para a plataforma. Ela tremia, não sabia o que fazer mas resolveu seguir no mesmo trem em um vagão diferente. Ao chegar ao destino, que seria a estação em que Lucas descia, correu pelas escadas para garantir que chegaria à entrada da estação antes deles. E esperou. Quando os viu, ela estava totalmente descontrolada, e colocou-se num salto na frente dos dois. Lucas empalideceu e a mulher, não disse nada, só observou. Ela falou naqueles poucos minutos tudo o que deveria ter dito ao longo de 30 anos! De vez em quando olhava para a mulher e dizia: me desculpe mas foram muitos anos, e tenho que falar tudo agora. Lucas balbuciava algo como mas eu terminei com você, disse que estava com outra pessoa, mas ela, não ouvia, falou até que suas palavras terminaram. Olhou para os dois, disse até logo, e saiu quase correndo até a rua. Encostou-se na parede da estação para garantir que não caísse com todo aquele tremor. De onde estava, pode ver quando eles passaram do outro lado. A mulher andava olhando para Lucas que gesticulava e falava o tempo todo. Com certeza repetia infinitas frase e cenas dos filmes e livros que decorara.

Ela realmente não tinha condições de sair dali sozinha. Ligou para Sylvia e pediu que fosse buscá-la. Já entrou no carro contando o que havia acontecido. Sylvia, ansiosa perguntou: e quem era a mulher. Ela disse que não a conhecia e só foi pensar na pergunta da amiga dias depois, quando seu desespero arrefeceu.

Que pergunta estranha a de Sylvia. Resolveu ligar e esclarecer. Sylvia disse que perguntou porque havia encontrado Lucas há alguns dias e ele lhe dissera que estava em um novo relacionamento. O que ela não esperava era saber que esta nova pessoa era Maura, a antiga amiga de adolescência....O pior foi ter estado frente à frente com Maura e não reconhecê-la! Seu transtorno naquele momento era tão grande que isto aconteceu. Maura deveria estar certa de que havia enlouquecido....

Esta foi o ponto final nas dúvidas de ela. Agora tinha certeza de que perdera Lucas. Desde o dia da discussão, deixara de ser conveniente prá ele, por isso foi em busca de Maura, que sabia que o "serviria" também por muito tempo, até que, se conseguisse, o mito fosse descontruido.

Só restava à ela tentar agora desfazer o mistério das palavras de Miguel. Telefonou novamente e ele insistiu para que fosse passar o final de semana no mosteiro apara conversarem pessoalmente. E ela foi. Seria bom estar com os amigos queridos.

Na manhã de sua chegada, participou das primeiras meditações do dia e tomou o café com Ling que estava cheio de novidades sobre seus planos quanto ao mosteiro. Ao final do café, Miguel juntou-se à eles chamou -a para irem para a familiar beira do lago para conversarem. Ele sabia que aquele era o lugar preferido dela.

Chegando ao lago, sentaram-se e ela foi logo tentando esclarecer sua confusão: Miguel, não consigo entender sua ideia de que o amor muda de alvo! E eu , como fico? Miguel pediu que contasse exatamente e com mais detalhes o que havia acontecido. Ela contou toda a história, sendo parada muitas vezes por um pranto convulsivo. Miguel ouviu pacientemente e ao final disse que mantinha sua fala. O amor havia mudado de alvo. Ela chegou a irritar-se. E disse: Tá ele mudou o alvo. Maura agora é a favorita! Muito bem! E eu??? Miguel começou a falar calmamente. - Querida, Lucas é muito imaturo e dependente. Ele precisará ainda por muito tempo de um alvo externo. Você não. Apesar de ter vivido tanto tempo dentro desta história sem sentido, percebia que algo estava errado, que algo não a satisfazia plenamente, buscou outros mundos, outros conhecimentos. Quis criar um conto de fadas, apesar de ser tão crítica, tão curiosa. Agora que o sonho se desfez, finalmente você poderá se dedicar ao alvo perfeito: você. Ninguém "preenche" ou completa ninguém! Somos seres únicos! E é para esta verdade que agora você pode olhar sem receios. Mude de alvo! Foque na sua companhia, na sua própria essência. E tire disso uma lição para si e para outras pessoas que possam estar buscando as mesmas respostas. Você encurtará os caminhos delas! Vai torná-los mais fáceis.

Foi  como se uma luz intensa acendesse em sua alma. Ela precisava pensar.   

2 comentários:

  1. As respostas estão todas na essência das perguntas. Estas ficam assim respondidas na própria génese. Nós perante nós.

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  2. É por isso que estou viciado na leitura dessa história. Nossa querida escritora consegue revelar cada vez com mais consistencia a essencia dos sentimentos dessa personagem intrigante. Essa revirolta descrita nesse capitulo reforça a idéia de que sempre estaremos nos perguntando qual o verdadeiro significado do amor. Parabens Patricia

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