sino

domingo, 29 de agosto de 2010

Capítulo 8 - Desconstruindo o Mito

Foram tempos muito duros.

Se de um lado, ela quisesse muito manter aquela situação que sonhara eterna e como uma menina, esperava que em algum momento se transformaria num lindo conto de fadas, por outro a cada dia sua consciência e maturidade não permitiam que continuasse em um devaneio, sem nenhum vestígio de realidade e objetividade.

Desde aquela noite, Lucas passou a falar em monossílabos. "Esquecia" de marcar o horário em que ela o encontraria na estação e quando ela chegava em casa ele nunca estava lá. Lucas recusava-se a fazer qualquer tipo de coisa de que antes parecia gostar.

Ela ficava cada vez mais angustiada. E suas lembranças transformaram-se em uma vilã implacável. Parecia um filme descontrolado que vagava por seus pensamentos insistindo para que finalmente raciocinasse sobre tantas situações estranhas ou obscuras.

Lembrou-se de conversas que teve com a mãe de Lucas. Dona Jane, falava de como não entendia o que havia acontecido com os filhos. Os dois mais velhos, que ao saírem da universidade conseguiram excelentes empregos em grandes empresas e lá ficaram por muitos anos, até que fossem mandados embora nas fases ruins do mercado no começo dos anos 80. Daí em diante, nunca mais conseguiram trabalho, faliram, um entregou-se ao alcool, perdeu a família. O outro transformou-se em um ser inerte, sentado eternamente em frente à TV, dependente do trabalho da esposa. E Lucas, que segundo a mãe dera muito trabalho quando criança, era dependente e mimado, com tendências à birra. Dona Jane dissera-lhe uma vez: - Será que vale a pena? Você não acha que deveria ter construído uma família prá você, ter filhos.... Ela surpreendeu-se com o comentário e respondeu que o amava muito e esperaria o quanto fosse preciso para tê-lo só prá si. Dona Jane voltou a fazer um comentário surpreendente: acho que não compensa.

Era difícil admitir, mas raramente as mães falavam coisas assim de um filho que valesse à pena.

O que ela não enxergava? Teria vivido uma fantasia toda sua vida?

Continuava a vasculhar a memória sobre os acontecimentos desde a adolescência. E as descobertas vinham aos montes. Por exemplo: a mania que Lucas tinha de nunca terminar uma canção, tinha o único objetivo de fazer com que as pessoas protestassem e afirmassem assim que o admiravam! As frases "fantásticas" e os gestos elaborados eram com certeza tirados de livros e filmes que ele assistira e adotava como comportamentos próprios.

Lembrou-se também de algo para o que não havia dado atenção na época certa. Lucas fora expulso da casa de Sonia pela sogra, que afinal era a dona da casa. E isto a fez lembrar também que Lucas, quando repentinamente casou-se com Sonia, tinha um motivo a mais além de um amor ou uma decisão consciente. Menos de um mês antes do casamento, teve uma briga com o pai que o mandou embora de casa. Ou seja, estava a procura de abrigo....

A tristeza que as lembranças traziam, juntou-se ao desconforto de não se sentir mais bem vinda naquela casa que prá ela era seu castelo, seu ninho de aconchego.

Em uma tarde, ao chegar na casa de Lucas depois do trabalho, encontrou-o passando uma camisa nova, perfumado, como se fosse sair.

Perguntou: Vai a algum lugar?
Lucas respondeu: Não vou ficar por aqui mesmo, estou cansado e quero dormir.
-Ah, tudo bem, vou fazer algo prá nós. Ela disse isso e já entrou na cozinha. Sobre a mesa, estavam os ingredientes e as vasilhas que ele usava para fazer pizzas. E perguntou: Lu? Você vai fazer pizza?
- Não sei, agora eu vou dormir.
- Vou tomar um banho então, ela disse.
- Não. Acho melhor você ir embora, quero ficar sozinho.
- Lu, vamos conversar... O que tá acontecendo? Você não liga mais, não me quer aqui. Eu nunca sei se devo vir, estou confusa.
- Está confusa porque quer. Você não tem mais nada prá fazer aqui, acabou....Foi bom enquanto durou.
- Lu.. você tá terminando comigo? Não pode ser isso. Vou deixar você sossegado hoje. Pensa, volto amanhã prá conversar.
- Não, você não vai voltar. Só o dia que entender que somos apenas amigos. Aliás, sempre foi só isso.
- Lu, não acredito no que estou ouvindo! Foram 30 anos... de amizade? E minha vida, minha dedicação.
- Tudo o que você fez, foi escolha sua....e por favor, vá embora na boa, porque quero descansar para receber uma amiga que vem comer uma pizza comigo hoje.

Ela perdeu a fala. Saiu sem dizer nada e antes de alcançar a rua já chorava copiosamente.
Passou aquela noite em desespero, fazendo-se milhões de perguntas sobre o que estava acontecendo, o que havia feito de sua vida.

Na manhã seguinte, ainda trêmula, resolveu recorrer ao amigo mais querido e sábio, Mestre Miguel. Telefonou ao mosteiro e quando ele atendeu com o doce alô de sempre, ela caiu em prantos novamente e mau conseguia contar o que estava se passando. Miguel ouviu o relato da amiga com atenção e perguntou o que poderia fazer. Ela disse que não sabia, que havia ligado porque precisava falar com alguém em que confiasse. Mas tinha uma pergunta: Miguel, será que o amor acabou? Ao que Miguel respondeu: - minha querida, o amor nunca acaba, ele apenas muda de alvo. Falaram um pouco mais, mas ela já não ouvia mais nada, a frase de Miguel ressoava em sua mente, insistentemente.

Ela perguntava-se como  Miguel podia dizer aquilo! Se o amor muda de alvo, como fica o alvo antigo? Era injusto.

Sua angústia continuou ainda por muito tempo. Tentava falar com Lucas por telefone, mas ele já não a atendia mais. Perguntava aos amigos que se esquivavam da conversa. Até que um dia, precisou ir de trem ao centro da cidade. Na volta,  ao chegar na estação principal, de longe avistou Lucas, parado próximo às escadas, parecendo estar a espera de alguém. Posicionou-se atrás de uma coluna e decidiu esperar para ver quem era. Em segundos, viu uma mulher de vestido estranho, cabelos alvoroçados, chegar e Lucas abrir um largo sorriso ao abraçar-la dirigindo-se para a plataforma. Ela tremia, não sabia o que fazer mas resolveu seguir no mesmo trem em um vagão diferente. Ao chegar ao destino, que seria a estação em que Lucas descia, correu pelas escadas para garantir que chegaria à entrada da estação antes deles. E esperou. Quando os viu, ela estava totalmente descontrolada, e colocou-se num salto na frente dos dois. Lucas empalideceu e a mulher, não disse nada, só observou. Ela falou naqueles poucos minutos tudo o que deveria ter dito ao longo de 30 anos! De vez em quando olhava para a mulher e dizia: me desculpe mas foram muitos anos, e tenho que falar tudo agora. Lucas balbuciava algo como mas eu terminei com você, disse que estava com outra pessoa, mas ela, não ouvia, falou até que suas palavras terminaram. Olhou para os dois, disse até logo, e saiu quase correndo até a rua. Encostou-se na parede da estação para garantir que não caísse com todo aquele tremor. De onde estava, pode ver quando eles passaram do outro lado. A mulher andava olhando para Lucas que gesticulava e falava o tempo todo. Com certeza repetia infinitas frase e cenas dos filmes e livros que decorara.

Ela realmente não tinha condições de sair dali sozinha. Ligou para Sylvia e pediu que fosse buscá-la. Já entrou no carro contando o que havia acontecido. Sylvia, ansiosa perguntou: e quem era a mulher. Ela disse que não a conhecia e só foi pensar na pergunta da amiga dias depois, quando seu desespero arrefeceu.

Que pergunta estranha a de Sylvia. Resolveu ligar e esclarecer. Sylvia disse que perguntou porque havia encontrado Lucas há alguns dias e ele lhe dissera que estava em um novo relacionamento. O que ela não esperava era saber que esta nova pessoa era Maura, a antiga amiga de adolescência....O pior foi ter estado frente à frente com Maura e não reconhecê-la! Seu transtorno naquele momento era tão grande que isto aconteceu. Maura deveria estar certa de que havia enlouquecido....

Esta foi o ponto final nas dúvidas de ela. Agora tinha certeza de que perdera Lucas. Desde o dia da discussão, deixara de ser conveniente prá ele, por isso foi em busca de Maura, que sabia que o "serviria" também por muito tempo, até que, se conseguisse, o mito fosse descontruido.

Só restava à ela tentar agora desfazer o mistério das palavras de Miguel. Telefonou novamente e ele insistiu para que fosse passar o final de semana no mosteiro apara conversarem pessoalmente. E ela foi. Seria bom estar com os amigos queridos.

Na manhã de sua chegada, participou das primeiras meditações do dia e tomou o café com Ling que estava cheio de novidades sobre seus planos quanto ao mosteiro. Ao final do café, Miguel juntou-se à eles chamou -a para irem para a familiar beira do lago para conversarem. Ele sabia que aquele era o lugar preferido dela.

Chegando ao lago, sentaram-se e ela foi logo tentando esclarecer sua confusão: Miguel, não consigo entender sua ideia de que o amor muda de alvo! E eu , como fico? Miguel pediu que contasse exatamente e com mais detalhes o que havia acontecido. Ela contou toda a história, sendo parada muitas vezes por um pranto convulsivo. Miguel ouviu pacientemente e ao final disse que mantinha sua fala. O amor havia mudado de alvo. Ela chegou a irritar-se. E disse: Tá ele mudou o alvo. Maura agora é a favorita! Muito bem! E eu??? Miguel começou a falar calmamente. - Querida, Lucas é muito imaturo e dependente. Ele precisará ainda por muito tempo de um alvo externo. Você não. Apesar de ter vivido tanto tempo dentro desta história sem sentido, percebia que algo estava errado, que algo não a satisfazia plenamente, buscou outros mundos, outros conhecimentos. Quis criar um conto de fadas, apesar de ser tão crítica, tão curiosa. Agora que o sonho se desfez, finalmente você poderá se dedicar ao alvo perfeito: você. Ninguém "preenche" ou completa ninguém! Somos seres únicos! E é para esta verdade que agora você pode olhar sem receios. Mude de alvo! Foque na sua companhia, na sua própria essência. E tire disso uma lição para si e para outras pessoas que possam estar buscando as mesmas respostas. Você encurtará os caminhos delas! Vai torná-los mais fáceis.

Foi  como se uma luz intensa acendesse em sua alma. Ela precisava pensar.   

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Capítulo 7 O Pesadelo

Os dias se passavam e ela gostava de estar ali,ao lado de Lucas, mesmo quando ele parecia distante.
Não faltaram ocasiões em que a velha admiração por suas frases perfeitas voltou. Mas ela não entendia porque elas passaram a incomodar. Talvez fosse pelo contato maior que tinham agora, que fazia com que seu discurso parecesse esnobe. Mas tentava afastar o incômodo. Não parecia fazer sentido.

De qualquer forma, a vida de "quase casados", o contato com amigos, as descobertas que fazia sobre ele a deixavam cada vez mais certa de que era prá sempre.

Em uma manhã fria mas em que o sol brilhava depois de muitos dias nublados, ela o observava enquanto se preparava para ir ao trabalho.

Quando ele foi abrir as janelas,comentou: -"nossa! parece que faz anos que o tempo esteve claro!"

Ela não compreendeu porque a frase simples a incomodou, parecia que já a ouvira,exatamente daquela forma em algum lugar. Mas claro, não disse nada.

Sairam, ele nunca a deixava sozinha na casa.

Durante o dia, várias vezes a frase veio atormenta-la mas, pensava que era a mistura de cansaço com a vontade de manter a energia sempre em dia que a estava fazendo divagar por bobagens.

À noite, quando chegaram em casa e  preparavam o jantar, ela comentou o fato de não ter uma chave da casa.

Lucas, indiferente, disse que Sonia dizia que era muito egoísta com suas coisas, que isto havia causado muitas brigas.

- Parece que ela tinha uma certa razão

- Ah, mas você acha que é possível? Ela queria que eu deixasse os meninos mexerem nas minhas coisas! Coisas que eu guardo com o máximo de cuidado há anos! Eles quebrariam tudo!
-Que coisas por exemplo?

-Meus bonecos, meus instrumentos, meus apetrechos de pesca!

- Bonecos? Que bonecos?

- É mesmo,você ainda não conhece.

Pegou-a pela mão e disse:

-Vem cá, vou mostrar!

Ele parecia uma criança prestes a desvendar um segredo. Abriu as gavetas sob a cama e tirou de lá um grande coelho de pelúcia vestido com um pijama e uma também grande réplica de Pinocchio.

Ela não sabia o que dizer, mas ele apressou-se
:
- Não são lindos? São presentes de meus avós! Não podia deixa-los destruir!

E emendou: - Vou pegar as coisas de pesca prá você ver!

E de outra gaveta retirou um estojo enorme, algumas varas, linhas. Abriu o estojo,cheio de anzóis e iscas artificiais e começou a descrevê-las.

Falava com grande entusiasmo! Eram peças norueguesas, japonesas e até russas! Segundo Lucas, objetos caros e alguns raros.

Ela disse: - Eu nunca soube que você gostava de pesca!

- Gosto, gosto muito. Sempre que ia para a praia, ficava pescando no canal ou na beirada praia.

- Mas estas peças não são para pesca deste tipo,bom, eu acho, não entendo nada.
E ele,orgulhoso de suas posses começou a explicar:

- Não mesmo! São peças para pesca de peixes especiais, esta para alto mar....

-E você fazia tudo isso? Porque parou?

-Não, nunca fiz, mas compro as peças.

- Não estou entendendo. Você compra só prá olhar prá elas?

- hum... você está agindo como Sonia. Qual o problema? Acho que amar é mais do que apenas dar as mãos (outra vez, uma frase vagamente lembrada). Você deveria ao menos fingir que gostou!

- Não Lu, tudo bem, só  acho estranho gostar tanto de um esporte e não praticar!

E mudou de assunto para não discutirem.

Alguns dias depois, foram convidados para o aniversário de uma amiga dela. Uma amiga querida com uma família bacana e que além disso tinha um piano,coisa que ela sabia que iria agradá-lo.

Lucas  aceitou o convite com facilidade, coisa rara já que evitava pessoas que não conhecia.

E como esperado, assim que chegou, já foi se aproximando do piano e alegrando a todos com seu talento.

Sylvia, a amiga, tinha um garoto de 7 anos simpático e carinhoso que passou a rodear Lucas que também se encantou com ele, e disse: -Não parece um esquilo?

Aquela frase simples, quase provocou um desmaio ! Esta ela conhecia e se lembrava perfeitamente! Era uma frase do filme Perfume de Mulher,! Dita pelo protagonista interpretado porAl Pacino. 

Durante o resto da visita, ela permaneceu tão tensa e distante que Sylvia percebeu e nem insistiu quando decidiram ir embora.

Os dias seguintes foram difíceis! Ela era invadida por pensamentos obsessivos quanto às frases que ouvira durante anos tentando saber se foram "copiadas" de outros roteiros.

Em uma noite em que decidiram ficar em casa e assistir um filme,ela teve mais uma pista.

O filme era Moulin Rouge . Em determinada cena (a que os protagonistas cantam uma belíssima música de Elton John), Lucas ficou extremamente emocionado e quis rever a cena por oito vezes!

Ela estava muda. Ali estava a resposta para anos de admiração de todos, dela e dos amigos que durante tanto tempo ficavam encantados com seu linguajar bonito e sofisticado.

 E era assim, o método era a repetição incessante daquilo que queria reproduzir!

Ela só conseguia pensar em que outras circunstâncias ele imitara a vida,a fala alheia!

E ela? O que significava? Qual parte da fantasia?

E ele? Quem era?

Naquela mesma noite, conversavam sobre amigos que não viam há algum tempo.

- E a Maura? Nunca mais tive notícias!

- Falei com ela outro dia.

- Onde? Ela estranhou.

- Liguei prá ela.Foi muito legal,ela reconheceu minha voz!

- Eu lembro bem de sua "queda" por ela. Até namoraram uns dias, né?

- É. Mas sabe? Eu gostava dela! De verdade! Prá você ver, eu gostava muito de você como amiga, mas me apaixonei pela Maura e foi por muito tempo!

A dor que ela sentiu foi indescritível! Mas mais uma vez não reagiu. Porém, desta vez sua tolerância causara um grande incômodo. Precisava começar a pensar em si. Não era possível continuar aceitando tudo como se fosse normal.

Algumas noites mais tarde, Lucas chegara do trabalho muito nervoso porque falara com Sonia sobre a possibilidade de visitar o filho mais velho em seu aniversário, o que ela aceitara, desde que marcassem um encontro em algum lugar que não fosse a casa dela. Lucas estava inconformado! Achava que deveria ser recebido em sua antiga casa.

Essa  conversa começara por volta das 22 horas.

Ela não disse uma única palavra, até que Lucas terminou de esbravejar sobre os defeitos da ex esposa até  as duas da manhã!

E terminou dizendo o seguinte: -Bom, o que interessa é que ela (Sonia) não significa mais nada para mim!

Foi a gota d'água.Como se o oceano represado por anos, viesse à tona e desaguasse pela boca dela que respondeu:

- Se Sonia não significasse nada, você não estaria falando nela há 4 horas!

O silêncio que se seguiu foi sepulcral. Lucas adormecia logo depois.

Ela não dormiria mais por muito tempo.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Capítulo 6 - Sonhando

A resposta de Lucas, foi algo surpreendente. Estava hospedado na casado irmão em uma cidade próxima , havia se separado de Sonia. Mas tudo isso dito de forma vaga, em tom monocórdio.

- Lu, preciso entender o que está havendo! Porque você foi prái? E o trabalho?

- Já conversei no trabalho, passo lá semana que vem para acertar tudo.

- E eu? Quando te vejo? Posso fazer alguma coisa?

- Por telefone não dá. Quando for ao escritório te ligo e a gente se vê.

Despediram-se assim, sem muitas explicações. Foi uma semana difícil. Os pensamentos não a deixavam em paz e se confundiam com lembranças que ela não sabia porque apareciam agora,neste momento.

 Nos últimos 10, 12 anos, além do envolvimento com as pessoas do mosteiro e sua religião, os estudos de filosofia  levaram-na a vários caminhos. Passou por experiências interessantes e loucas ao mesmo tempo. Entre elas a regressão à vidas passadas dera-lhe explicações convincentes sobre muitas coisas, inclusive sobre seu relacionamento com Lucas.

 Mas, ela mantinha tudo à distância, não buscava dirigir-se pelo que lhe foi mostrado. Queria a vida como é, fluindo sem interferências.

 Mas o que ela mais estranhava, é que uma lembrança bastante antiga viesse agora. Há anos, quando Lucas apenas namorava Sonia, tinha ido à casa dele, no dia de seu aniversário para "receber os parabéns", Como ele não estivesse, resolveu ficar na porta esperando e logo o avistou descendo a rua. Quando a viu, abriu o sorriso de sempre e entrou no carro. Beijou-a, abraçou-a e deu os parabéns. O que ela notou foi que tinha nas mãos um pequeno embrulho de presente e sua alma alegrou-se, devia ser prá ela.Ele falava sem parar, contando coisas que fizera no dia, sempre manuseando o tal embrulho, como querendo chamar a sua atenção. E ela não resistiu mais e perguntou:

- E esse embrulho? O que é?

- Ah! comprei prá Sonia! Você não sabia? Hoje é aniversário de namoro.Veja.
Abriu o embrulho e lhe mostrou um lindo anel de prata.

Ela nunca esqueceu aquela sensação horrível de tristeza e decepção, mas como sempre, na hora reagiu com o máximo possível de naturalidade dizendo:

- Não, eu não sabia, você nunca me contou.

Ela estranhava que ele nunca lhe desse presentes, já que ela sempre o fazia ao menos em datas especiais. Mas, como em geral sabia que homens não ligam muito prá essas coisas, ignorava. Mesmo porque havia aquela série de atitudes e frases fantásticas que substituíam outros mimos.

No dia que Lucas veio para acertar as coisas no escritório, telefonou no fim da tarde e marcaram um encontro em uma lanchonete próxima a casa dela. O encontro foi como tantos outros, exceto por perceber claramente que ele estava confuso e agitado.

- Lu, o que aconteceu? O que você tá fazendo no seu irmão?

- Então, acabou. A discussão foi à noite e aquela velha desgraçada me botou prá fora!

- Quem?

- Minha sogra! Aí eu liguei pro meu irmão e fui prá lá, com uma mochila de roupas.

- Mas e a Sonia?

- Ela não disse nada, e quem cala consente, não é?

- Não sei, acho que vocês deviam conversar, não acha?

- Que nada, a briga foi com ela, ela só não teve coragem de me mandar sair, deixou prá mãe,a dona da casa!

Ela não estava entendendo nada, mas preferiu deixar as coisas correrem.

-Mas como foi no trabalho, como você vai fazer prá trabalhar morando tão longe?

- Eles me deram 10 dias até eu arrumar um lugar mais perto prá ficar.

- E o que você pretende fazer? Ir prá um hotel, Alugar alguma coisa?

- Já reservei um quarto naquele hotel que tem do lado do escritório. Vou no meu irmão pegar minhas coisas e volto amanhã.

- No seu irmão foi tudo bem?

- Claro que não minha cunhada já veio dizendo logo que lá eu não poderia ficar por muito tempo.

- Mas onde você pretende alugar alguma coisa? Você sabe que não posso leva-lo prá minha casa...

- Calma, não se preocupe. Já tenho umas ideias e quando voltar, resolvo. Me leva à estação do trem?

- Claro! E quer que vá busca-lo quando chegar?

- Quero sim.

Ele foi, e voltou no final da tarde seguinte. Dormiram em um motel. Lucas falou a noite toda sem que ela precisasse fazer perguntas. Disse que ligara para Sonia dizendo que queria todos os presentes que lhe dera durante o tempo de namoro e casamento de volta e que ela deveria marcar um dia para que ele fosse buscar o restante de suas coisas inclusive os móveis que mantinha na garagem.

Ela ficava espantada a cada palavra, a cada frase e finalmente falou:

-Móveis, que móveis?

- Quando minha mãe trocou os móveis de casa resolvi ficar com os dela caso a gente montasse uma casa. Mas Sonia nunca quis sair do lado da mãe.

- Nossa, mas não eram móveis velhos?

- Velhos não!  Antigos e de ótima qualidade. Prá que eu iria comprar tudo de novo? Mas a outra lá, torcia o nariz!

- Lu, não acredito que você pediu os presentes de volta!

- Como não? Você dá presentes por carinho, por amor, isso acabou não foi? Então quero tudinho de volta! E vou devolver tudo também! Já deixei com meu irmão, ela vai ter que ir lá buscar.

E realmente dias depois, ele contou que Sonia levara os presentes ( na verdade poucas coisas) e que se recusara a receber os que ele havia deixado para que fossem devolvidos à ela. Havia dito também que ele poderia ir buscar os móveis quando quisesse, mas isso levou semanas para ser resolvido já que Lucas exigia que só o cunhado estivesse na casa no dia, não queria ver nem Sonia nem a sogra.Ela estranhava que em nenhum momento ele falara nas crianças.

-E os meninos?

- Não falei mais com eles. Mas ela vai ver! Quero vê-los quando quiser,só vou esperar até me ajeitar, ter uma casa. Enquanto isso não quero nem telefonar prá não piorar as coisas.

- Você não acha que devia manter contato?

- Prá que, prá eu sofrer mais, não deixa prá lá.

Na manhã seguinte ela o deixou no escritório.

No fim da tarde ele ligou todo entusiasmado dizendo que já havia resolvido a questão do lugar para morar.
Marcaram já na nova casa, que ficava próxima à antiga  casa dos pais dele, que havia sido vendida um ano antes. Pertencia a conhecidos, que não fizeram muitas exigências. Era minúscula,quarto,cozinha e banheiro, com uma única janela, mas bem localizada e suficiente para uma pessoa sozinha.

 Ele estava feliz e a contagiava. Dormiram lá no chão, sobre caixas de papelão. Mas prá ela era como se estivesse em um hotel 5 estrelas. Nos dias que se seguiram, ele, depois de muita discussão,acertou a data de retirar os móveis da casa de Sonia. 10 dias e a casa estava montada. Ela passava horas lá lavando louças (que ele também havia mantido com os móveis),colocando as coisas no lugar, como se estivesse brincando de casinha. Percebia-se sorrindo como uma criança na noite de Natal.

 Uma nova fase começaria para eles. 

Ela passava mais tempo na casa dele no que na própria. Só não podiaa ir prá lá definitivamente porque precisava cuidar da tia e da mãe.

Era tudo muito novo.Um"meio casamento".

Passavam horas ouvindo música,conversando recebendo amigos.Ele desfilava seus dotes culinários,era carinhoso e atencioso. Até demais.

À partir do momento que passaram a ter esta convivência, Lucas a solicitava demais enquanto não estava com ele. Ligava muitas vezes ao dia,chegava a atrapalhar.Mas, até então,ela via isso como apego,amor...

Era um sonho se realizando

Aos poucos, percebeu que havia algo errado.